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Carta de Intenções: planejamento que se abre ao diálogo no movimento de projetação
Documento revela concepção de infâncias e de educadores ancoradas nos documentos curriculares da SME
Publicado em: 02/09/2019 18h04 | Atualizado em: 30/11/2020A Carta de Intenções, como ponto de partida para o planejamento contínuo docente, não é reveladora apenas do “vir a ser” pedagógico, mas também de uma concepção de bebê, de criança, de infâncias, de educadores, de educação infantil, que deve estar ancorada nos documentos curriculares da Secretaria Municipal de Educação e no Projeto Político-Pedagógico da Unidade Educacional.
A Orientação Normativa sobre Registros na Educação Infantil 01/19 estabelece que a Carta de Intenções substitui o Plano Anual: aquele planejamento anual (organizado por mês, bimestre ou semestre) que era feito no início do ano e que não considerava a escuta das crianças e nem a flexibilidade do planejamento contínuo. Nesse contexto é importante destacar que a Carta de Intenções não substitui o planejamento contínuo docente. Este deve ser elaborado e registrado pelos professores em seus Diários de Bordo, Semanário ou outro instrumento de registro. Isto quer dizer que é fundamental que os professores planejem por escrito as proposições que serão oferecidas para e com os bebês e as crianças com antecedência.
O processo de escrita da Carta de Intenções se sustenta nos saberes docentes, na escuta e na observação de bebês e crianças. Apesar de ter objetivos e declarar a intencionalidade do trabalho docente, a Carta é um instrumento de registro que indica possibilidades, desejos e flexibilidade, permitindo que os percursos se modifiquem à medida que aconteçam as experiências cotidianas junto com os bebês e as crianças.
É crucial no mapeamento de dados e levantamento de informações prévias para a elaboração da Carta de Intenções, pensar nos modos de organização do grupo, que se revelam por meio da observação e registros da participação das crianças em momentos em grupo e individuais, tais como: rodas de conversas, planejamentos coletivos, escuta de histórias, combinados da rotina, distribuição de responsabilidades e tarefas visando as diversas interações estabelecidas entre os bebês, crianças e professoras(es).
As semanas que “inauguram” o ano letivo e a história do grupo colaboram para as primeiras observações e ideias e revelam, ainda que inicialmente, anseios, curiosidades e saberes de bebês, crianças e professores. Registrar estes elementos por meio da Carta contribui para a orientar olhares e fazeres que iniciam uma história coletiva.
Entre a escuta expressa e os desafios percebidos, a Carta de Intenções vai se configurando como uma pista, um mapa ou como um plano de viagem dos primeiros passos do caminho do grupo, construídos por desejos e intenções pedagógicas que podem – ou não – se concretizarem.
Considerar a Carta de Intenções como um planejamento inicial está de acordo com os princípios delineados no Currículo da Cidade – Educação Infantil (2019) quanto às abordagens pedagógicas que priorizam as vozes e culturas infantis e que entendem que essas vozes e culturas precisam estar presentes no planejamento contínuo, ajudando o professor a tornar-se um provocador de aprendizagens, de explorações, de descobertas e de brincadeiras para e com bebês e crianças, que são o centro do planejamento da ação educativa.
O planejamento contínuo construído a partir da Carta de Intenções é revelador das reflexões que pautam as vivências infantis e as escolhas diárias docentes, como, por exemplo: os usos dos tempos e as relações entre os tempos da instituição e os tempos dos bebês e das crianças; as organizações dos espaços que podem se tornar ambientes que convidam para uma brincadeira, para uma exploração, para uma pesquisa, para a superação de um desafio; a seleção de materialidades diversas; as proposições de interações por meio de brincadeiras de pequenos e grandes grupos, de encontros com a arte, de rodas de histórias, etc.
Para contribuir com a reflexão sobre o conteúdo da Carta de Intenções – sobre o que precisa estar presente na escrita da Carta – o Grupo de Trabalho – Registros na Educação Infantil analisou algumas Cartas de Intenções de professores da RME e compartilhará nos próximos parágrafos trechos dessas Cartas que podem ajudar as(os) educadoras(es) a analisarem outras Cartas de Intenções. É preciso destacar que que não há um único modelo de Carta de Intenções porque cada contexto educacional carrega suas especificidades que precisam ser consideradas na Carta – Projeto Político-Pedagógico – e cada sujeito que escreve a Carta possui diferentes experiências formativas, profissionais e pessoais que precisam dialogar com o Currículo da Cidade – Educação Infantil.
De acordo com a Orientação Normativa Nº 01/2019 a linguagem das Cartas de Intenções pode favorecer seu compartilhamento com crianças e famílias/responsáveis, para que conheçam e participem do processo vivenciado. Torna-se assim, necessário pensar em alguns elementos que podem constituir a Carta de Intenções, expressadas no presente texto com problematizações em negrito: Quem é/são o/s destinatário/s da Carta de Intenções? Como se caracteriza este gênero de texto? A Carta se inicia com o local, a data e o destinatário. No contexto da unidade educacional, os principais destinatários são as crianças, os familiares/responsáveis, por isso, é preciso ter uma uma linguagem clara e acessível a respeito das intenções pedagógicas. No exemplo a seguir é possível verificar como isso ocorre:
Neste exemplo, o acolhimento aos bebês durante a primeira semana no CEI revela uma aproximação com as famílias e a intencionalidade do vínculo afetivo. Ao explicitar essas intenções pedagógicas, a Carta consegue comunicar às famílias como acontecerá esse trabalho com os bebês e dirimir a ansiedade das famílias.
Na Carta, as intenções são comunicadas e abre-se uma interlocução com o destinatário e com os espaços e pode ser observado no trecho a seguir, de outra Carta de Intenções:
“Neste contexto de realizar escutas, de ser professora observadora dos fazeres das crianças, encontrei como parceiro pedagógico, os espaços da Unidade Educacional, ou melhor, quando organizo as propostas nestes espaços, deixando-os acolhedores, instigantes e convidativos para as ações das crianças, é que eles se tornam parceiros do meu fazer docente”. (CEI Maria Cursi- Profª Cinzia Galan Vendramini)
A professora escreve na primeira pessoa, uma das características da Carta, demonstrando a intenção de escutar e observar a criança, para planejar e organizar os espaços. O Currículo da Cidade – Educação Infantil (2019) aponta a necessidade de bebês e crianças terem espaço e materialidades diversificados para experimentar e explorar. Um espaço bem organizado que promova a atividade autônoma, possibilita que as crianças possam realizar escolhas do que brincar. Outro aspecto importante da carta é: Que experiências pretendo oferecer às crianças? Que relações quero construir com as crianças? Quais relações construo junto ao coletivo?
O planejamento contínuo é parte do trabalho pedagógico e a Carta de Intenções é uma abertura ao diálogo com familiares, crianças e também com outros educadores. O exemplo a seguir aponta algumas experiências que a professora anuncia como intenção ao grupo, por meio de brincadeiras, danças e histórias das culturas africanas, indígenas e imigrantes, relacionando-se com a construção de identidade, percepção do eu e do outro.
“(…) Sabendo que nossas crianças estão em processo de construção de identidade e este também se dá pela oferta de elementos culturais ao qual têm acesso, penso que é importante oportunizar a elas propostas de trabalho em que possam se reconhecer, discutir e valorizar a diversidade étnico racial, atendendo às leis 10.639/03 e 11.645/08. Apresentando e explorando assim, elementos das culturas africanas, indígenas e imigrantes como brinquedos e brincadeiras, danças, músicas, culinária, adereços, roupas, livros e histórias que trabalhem a representatividade desses povos etc.(…)
Após o período de acolhimento, a partir das observações dos bebês e crianças, de seu agrupamento, a professora pode revisitar seus registros e refletir sobre alguns pontos: O que as crianças comunicam, expressam, falam, pensam? Que proposições incentivaram as crianças a construírem narrativas, a se envolverem na atividade/brincadeira, a expressarem o que sabem, pensam, sentem?
“Embora sejamos as professoras, não detemos todo o conhecimento, este será construído junto, pois reconhecemos que vocês são protagonistas de suas próprias histórias e nós, mediadoras e incentivadoras dessa construção.
Queremos ajudá-los a terem confiança em si mesmos, criando um ambiente acolhedor em que todos participem e tenham suas especificidades respeitadas, desenvolvendo sua autonomia e potencialidades, sendo desafiados e incentivados a superar possíveis dificuldades.
Por meio das histórias lidas, contadas e vivenciadas desejamos que vocês desenvolvam o gosto pela leitura, alimentem a imaginação e que ampliem seu vocabulário, enriquecendo sua linguagem oral.
As brincadeiras farão parte do nosso cotidiano, seja na sala, no parque, no corredor, ou em qualquer outro espaço da escola, permitindo que vocês vivenciem diferentes papéis, expressando suas emoções e aprendendo a lidar com elas, conhecendo o próprio corpo, suas capacidades e limites.
Proporcionaremos a vocês o contato com diferentes materiais estruturados ou não (bolas, cordas, sucatas, etc.), a fim de que vocês experimentem várias possibilidades de brincar. As produções artísticas também farão parte da nossa caminhada como pinturas, colagens, modelagens, desenhos (com diferentes suportes), dança, teatro e música, ampliando gradativamente nosso repertório e ressaltando que todas as produções são importantes e ricas para apreciação.”
A Carta de Intenções é um instrumento de registro que vem ao encontro da reinvenção da ação docente porque revela os modos de organização da vida nos cotidianos da Educação Infantil, como os momentos de chegada e saída, refeição, higiene, uso do parque, organização da sala de referência e contato com a natureza. Essa organização da vida possibilita o direito dos bebês e crianças à convivência, à participação, à brincadeira.
“…As interações com os adultos e outros bebês são importantes para o desenvolvimento afetivo, descobrimos na relação diária a confiança mútua, favorecendo a construção de vínculos. Os momentos de cuidados são muito propícios para que o bebê possa se sentir seguro em relação ao adulto, por isso no momento da troca, alimentação e até os banhos intencionais, possibilitam que o adulto estabeleça uma relação de afetividade que possa ser fortalecida através de pequenos gestos como o olhar para o bebê sempre na altura dos seus olhos, movimentos suaves para trocas e banhos, conversa que antecipa o toque em seu corpo principalmente em momentos de troca e higiene, entender as preferências na hora da alimentação e respeitá-las, deixar todos estes momentos o mais tranquilo para que o bebê confie no adulto que está por inteiro com eles nestas interações…”
O Currículo da Cidade – Educação Infantil (SME, 2019) oferece subsídios para a reflexão sobre a organização dos espaços e a oferta de materialidades como fundamentais para a construção de cenários e contextos de investigações e brincadeiras. No exemplo a seguir, é possível compreender como a professora cria contextos de investigações e brincadeiras para as crianças explorarem:
“Considerando a necessidade de “apanhar desperdícios” como indica Manoel de Barros, oferecerei lama, parque, água quente, fria, gelada, bolhas de sabão, com objetivo de ampliar o repertório de experiências, em tempos que os tablets, celulares e demais eletrônicos, tem sido amplamente utilizados pelas crianças desde a primeiríssima infância. Entendendo a importância também da utilização das novas tecnologias, bem como o movimento de protagonismo infantil, oferecerei meios para que elas fotografem, escolham suas fotos para registros, filmem suas vivências, assistam suas produções e tenham oportunidades também no campo das novas tecnologias de modo a ressignificar a utilização costumeira dessas ferramentas (…)A Orientação Normativa 01/15, outro documento oficial da PMSP que indica os padrões básicos de qualidade na Educação Infantil Paulistana, indicam a necessidade de pensarmos os materiais, espaços, brinquedos. Desse modo tenho como intenção pensar espaços educativos, lúdicos e inovadores, além de dos materiais e brinquedos que possibilitem criatividade, aprendizagens e prazer nas experiências vivenciadas aqui na EMEI. Vale ressaltar, que como aponta Malaguzzi (1996) o espaço é uma espécie de aquário vivo, que deve espelhar a alma de quem nele habita.”
Com relação aos cenários de investigações e brincadeiras, a professora provoca as crianças e as incentiva quando organiza as materialidades disponíveis na Unidade Escolar (areia, lama, bolha de sabão, caixas e outros) e as oferece às crianças. É importante ressaltar que o brincar na escola é diferente do brincar em casa, sendo assim, torna-se necessário na Carta, explicitar estes aspectos para os familiares, destacando a sua importância para aprendizagem e o desenvolvimento da criança.
O Currículo da Cidade – Educação Infantil (2019) revela que aprender a observar e a escutar os bebês e as crianças é o desafio dos professores, pois é preciso considerar a educação como um processo no qual as demandas de bebês e crianças, seus interesses e suas necessidades geram processos coletivos de ampliação e aprofundamento das experiências corporais, sociais, culturais e científicas. Cabe à educadora(or) sempre se perguntar: Que necessidades, interesses e desafios das crianças estão mais evidentes?
No exemplo a seguir verifica-se a observação da professora sobre o interesse das crianças em relação à uma fruta que encontraram caída no chão, surgindo assim, a proposição para o desenvolvimento do projeto com a turma.
“Outra experiência que as crianças tiveram foi em relação à nossa goiabeira. Um determinado dia, uma das crianças notou a fruta no chão e perguntou de onde ela veio. A partir daí começamos nossas pesquisas quanto às árvores frutíferas e a degustação de seus frutos. Continuamos contando com a participação das famílias, que vem sendo essencial para as diferentes vivências das crianças.”
As professoras partem de uma escuta coletiva das crianças, sinalizam a construção de um Projeto e traçam os objetivos a serem alcançados. Isso demonstra que é possível dialogar com a proposta curricular através das Cartas de Intenções propiciando interações que fortaleçam a autoria das crianças e a participação delas no planejamento.
Mapeados os interesses, necessidades e curiosidades dos bebês e das crianças, surge a necessidade da professora construir a relação pedagógica considerando as crianças, as(os) educadoras(es), os contextos e as culturas(saberes, linguagens e conhecimentos). A partir da observação e registro das experiências pautadas nos interesses e curiosidades de sua turma, cabe à professora refletir sobre o que foi vivido com a turminha e relançar suas intenções: Como ampliar as leituras de mundo do grupo e explorar a cultura infantil? Que contextos de investigação pode ser organizado, oferecido? Que possibilidades de novas descobertas promover?
“Outra constatação que pudemos verificar é o quanto os nossos pequenos têm e exploram suas habilidades de criação e reinvenção, o que nos sinaliza a necessidade de proporcionamos um ambiente rico de materiais organizados para que possam realizar suas experiências sensoriais táteis, visuais, olfativas, etc, por meio do contato com objetos não estruturados, incluindo elementos da natureza. Por se tratar de uma escola de período integral usaremos todos os espaços do CEI, inclusive o parque, para que estas experiências sejam contempladas ainda dentro deste contexto de exploração, temos como objetivos, propor experiências de brincadeiras culturalmente aprendidas, como forma de resgate da identidade familiar e da construção da auto imagem da criança, levando em consideração o que nos comunica o documento Currículo da Cidade.”
É possível apresentar nas Cartas de Intenções os projetos institucionais desenvolvidos nas Unidades Educacionais:
“Com projetos e orientações pedagógicas disponibilizados nos documentos oficiais e Projeto Político Pedagógico desta unidade escolar, temos a intenção de estabelecer uma linguagem que venha ao encontro destes documentos, desenvolvendo o pensamento sustentável, o não-consumismo, a alimentação saudável, o viver bem, o se preocupar com o próximo, a interação social, o respeito à educação inclusiva, a igualdade de gênero e acima de tudo, garantir de alguma forma, momentos de uma infância feliz.”
Nesta Carta, os projetos da Unidade Educacional são apresentados garantindo o diálogo entre esses projetos (PEA e PPP) com os documentos curriculares da Rede Municipal de Educação.
Para continuarmos a avançar, propomos algumas perguntas, no contexto do processo documental, que podem ajudar as(os) professoras(es) a refletirem sobre suas Cartas de Intenções do primeiro semestre de 2019 e a olharem para suas Cartas de Intenções do segundo semestre.
Em suma, o presente texto buscou auxiliar na elaboração da Carta de Intenções como um planejamento inicial do semestre disparador das primeiras possibilidades em relação ao trabalho que a(o) professora(or) intenciona junto aos bebês e crianças, a partir da observação e escuta atenta. As perguntas em negrito trazem elementos que ajudam a pensar na escrita da Carta.
Que a escrita da Carta de Intenções ajude a você, profissional da Infância, a aprimorar as ações que contribuam para a qualificação constante das experiências promovidas juntos e com os bebês, crianças e famílias em sua Unidade, alinhadas aos princípios do Currículo da Cidade: Educação Infantil.
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